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Introdução


Planejar redes em IPv6 exige uma mudança de mentalidade em relação ao que estamos acostumados no IPv4. Enquanto no IPv4 o esforço está em economizar endereços e trabalhar com sub-redes apertadas por causa da escassez, o IPv6 parte do princípio oposto, endereçamento abundante, planejamento lógico, e escalabilidade a longo prazo.


O primeiro ponto é entender que no IPv6 não se trabalha com sub-redes pequenas. O tamanho padrão para uma rede local é /64, e isso não é uma recomendação, é uma exigência técnica em muitas situações, como no uso de SLAAC. Cada rede local deve receber seu próprio /64, mesmo que tenha poucos dispositivos. Isso garante compatibilidade com os mecanismos automáticos de configuração e roteamento.


Ao planejar, você parte de um prefixo maior, por exemplo, um /48, que é um tamanho comum delegado por provedores a clientes corporativos (ou um /64 se for residencial). Esse /48 permite criar até 65.536 sub-redes /64, todas com endereçamento global, roteável na Internet. A partir daí, o planejamento gira em torno de segmentar esse espaço de maneira lógica, usando critérios como localidade física, função da rede (usuários, servidores, IoT, etc), domínio administrativo, ou qualquer outra estrutura organizacional que faça sentido para sua operação.


Outro conceito essencial no planejamento IPv6 é a estabilidade e previsibilidade dos prefixos. Ao contrário do IPv4, onde NAT mascarava endereços internos, no IPv6 os endereços são visíveis e diretamente roteáveis, isso exige um bom plano que evite sobreposição, preserve segurança, facilite troubleshooting e suporte o crescimento. Além disso, é desejável manter blocos limpos e hierárquicos que ajudem a gerar rotas agregadas e manter a tabela global enxuta.


Há também o aspecto da documentação, com um espaço tão amplo disponível, documentar cada alocação com clareza (quem usa, para quê, quando foi delegado) é essencial. Softwares como IPAM ajudam muito aqui, mas mesmo um bom controle manual já é um grande avanço.


Por fim, é importante lembrar que o planejamento de IPv6 não é algo que se faz uma vez só, ele deve prever o futuro, ser flexível para expansão e adaptações, e acompanhar a evolução da topologia da rede. Quem tenta reproduzir os modelos rígidos e limitados do IPv4 em um ambiente IPv6 acaba criando mais problemas do que soluções. Por isso, o planejamento deve sempre ser feito com uma visão de longo prazo, liberdade de design e atenção às particularidades do protocolo.



Estrutura Hierárquica e Alocação de Prefixos: como organizar o espaço IPv6 com lógica e escala


Depois de entender que o IPv6 nos dá um espaço imensamente maior para trabalhar, o próximo passo no planejamento é definir como esse espaço será distribuído de forma hierárquica dentro da rede. A ideia central é que, com prefixos bem organizados, você facilita o roteamento interno, a manutenção da rede, o crescimento futuro e, em alguns casos, até o anúncio de rotas externas de forma agregada.


A estrutura mais comum parte de um prefixo global, como um /48 fornecido por um ISP. Com esse bloco em mãos, você pode dividi-lo em sub-blocos menores, tipicamente /56 para locais ou unidades organizacionais, e /64 para redes de usuário final. Por exemplo, você pode reservar os primeiros bits após o /48 para codificar localidade (cidade, prédio, andar), depois tipo de serviço (acesso de usuário, backbone, servidores), e então distribuir os /64 conforme a necessidade.


Essa alocação hierárquica permite que você tenha controle total sobre sua rede sem depender de planejamento reativo. Por exemplo, você pode definir que tudo que começar com 2001:db8:1000::/52 é destinado ao campus de São Paulo, enquanto 2001:db8:2000::/52 vai para o datacenter de Curitiba. Dentro desses blocos, outros bits vão subdividir as funções. Isso garante que, mesmo com milhares de redes internas, você mantenha uma topologia limpa, previsível e fácil de documentar.


Outro ponto importante é a agregação de rotas. Com uma hierarquia bem planejada, seus roteadores de borda podem anunciar apenas um ou dois prefixos para representar centenas de redes internas, reduzindo o tamanho das tabelas de roteamento e melhorando a eficiência do core da rede. Isso é vital em ISPs e grandes corporações.


Por fim, evite cair na armadilha de pensar como no IPv4. Não faz sentido alocar blocos /124 ou /126 para interligações ponto-a-ponto, mesmo essas devem receber /64, como recomenda o padrão. O IPv6 permite que você pense em blocos grandes, limpos e previsíveis, sem precisar ficar “contando endereços”.


O segredo aqui é, antecipe-se. Reserve espaço pensando no crescimento futuro. Um bom plano de alocação hierárquica transforma sua rede em algo sustentável, escalável e muito mais fácil de operar.



Planejando endereços na prática


Imagine que você recebeu do seu provedor um bloco IPv6 do tipo /48, o que é comum em cenários corporativos. Suponha que o prefixo seja 2001:db8:1000::/48.


Você tem uma sede principal, dois escritórios remotos, e precisa segmentar a rede em categorias como usuários, servidores, dispositivos IoT, e interconexões de roteadores. Como o objetivo é manter organização e escalabilidade, você começa dividindo o /48 em blocos maiores por localização física. Um /52 para cada local permite 16 blocos por site e ainda mantém espaço para expansão.

  • 2001:db8:1000::/52 → sede
  • 2001:db8:1010::/52 → escritório remoto A
  • 2001:db8:1020::/52 → escritório remoto B

Dentro de cada /52, você divide novamente em blocos /56 para tipos de serviço. Cada /56 suporta até 256 sub-redes /64, o que é mais do que suficiente para a maioria dos usos.


Na sede:

  • 2001:db8:1000::/56 → redes de usuários
  • 2001:db8:1001::/56 → servidores
  • 2001:db8:1002::/56 → IoT e dispositivos de infraestrutura
  • 2001:db8:1003::/56 → links ponto-a-ponto e backbone interno

Agora, por exemplo, você aloca para o 1º andar da sede, que tem dois switches e três VLANs:

  • 2001:db8:1000:0100::/64 → VLAN administrativa
  • 2001:db8:1000:0101::/64 → VLAN usuários
  • 2001:db8:1000:0102::/64 → VLAN convidados

Para os servidores:

  • 2001:db8:1001:0001::/64 → servidores web
  • 2001:db8:1001:0002::/64 → banco de dados
  • 2001:db8:1001:0003::/64 → backup

E assim por diante. Cada parte da rede tem um bloco previsível, estável, e documentável. Além disso, como todos os prefixos pertencem à mesma hierarquia, o roteador de borda pode anunciar de forma agregada só o 2001:db8:1000::/48, mantendo a tabela de rotas simples e limpa.


Esse exemplo mostra como, com um pouco de estrutura, é possível montar um plano de endereçamento IPv6 robusto, lógico e preparado para crescer. E o mais importante, sem precisar "economizar" endereços ou criar gambiarras, algo que o IPv6 veio justamente para eliminar.